O sorriso da Monalisa
Autor: Parsifal Pontes
A primeira vez que eu vi a Monalisa fiquei decepcionado: um quadro pequeno, atrás de um vidro de segurança, em um corredor tumultuado do Louvre.
A minha expectativa mostrou-se bem maior que a obra que eu acabara de ver. Acabei concluindo que a Monalisa, menos que uma obra prima, era mais um ícone precipitadamente escolhido pela mídia.
Eu acalentava uma dúvida sobre quem houvera sido mais prodigioso, se Leonardo da Vinci ou Michelangelo Buonarroti: sempre que eu me decidia por Michelangelo, imediatamente procurava algo de Da Vinci e a dúvida voltava.
Eu já tinha uma queda por Michelangelo, devido ao Moisés.
Sempre que vou a Roma, não parto sem ir a San Pietro in Vincoli. Dentro da igreja eu experimento dor e êxtase: aquela ao fitar as correntes com as quais Roma submeteu o apóstolo Pedro; este ao admirar a obra magistral de Michelangelo, o Moisés.
Saí do Louvre decepcionado, todavia aliviado: eu acabara de decidir que Michelangelo fora melhor que Leonardo.
Mal sabia eu que estava sendo injusto com Da Vinci. A minha decepção com a Monalisa, pouco tempo depois, viria a se mostrar precipitada.
Talvez por providência, uma série de fatos passou a me chamar atenção, e comecei a estabelecer com eles conexões imediatas com a obra preferida de Da Vinci.
Eu estava relendo Dom Casmurro, de Machado de Assis. Capitu, um dos personagens femininos mais fascinantes da literatura universal, sempre teve forma fugidia para mim.
Assim a descreve Machado: “criatura de 14 anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo,... morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo...”.
Capitu, a partir do momento em que Machado a apresenta, torna-se o tema central da imaginação do leitor. Passa a ser o personagem principal da obra.
Continua Machado na descrição da moça: “... olhos de cigana oblíqua e dissimulada, mas para Bentinho os olhos pareciam olhos de ressaca; traziam não sei que fluido misterioso e energético, uma força que arrastava para dentro, com a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca".
Parei a leitura, para pintar Capitu na mente. Não mais que de repente, lá estava o quadro de Da Vinci em frente aos meus olhos. A Monalisa me sorria venturosa: ali estavam o sorriso, os olhos e a atitude de Capitu na janela de Machado de Assis.
Eu já fizera uma conexão, quando li, do mesmo Machado de Assis, aquilo que eu considero a obra prima do conto nacional, o Missa do galo.
Comparei Conceição com Capitu. Todo o perfil dissimuladamente insinuante e psicologicamente incerto daquela senhora, reportava-me à personagem central de Dom Casmurro.
Quis concluir que Machado traçara o mesmo perfil feminino, ideal para protagonizar o seu conto mestre.
Machado, através do personagem Nogueira, diz de Conceição: “... Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar...” e, mais adiante, “... o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo...”.
Machado, nas duas personagens, concluía pela dissimulação. Um perfil psicológico complicado, de quem tem sempre o álibi inquietante da dúvida a oferecer ao interlocutor.
Mais uma vez, a capa da obra poderia ser, perfeitamente, a Monalisa que, no conto, era Conceição, a encher de dúvidas o Nogueira, da mesma forma que Capitu tirou o sossego do bentinho.
Não poderia, neste curto ensaio, alongar-me em exemplos buscados na literatura, para definir este tipo de mulher que Da Vinci pintou na Monalisa.
Detive-me no gênio de Machado de Assis, por ser nacional e, com certeza, sem influência alguma do gênio de Leonardo, para buscar na Monalisa a personalidade dos personagens femininos aqui rapidamente demonstrados.
Todavia, em se querendo ratificar exaustivamente a tese em tela, que acabou sendo a minha revelação para recolocar da Vinci no mesmo patamar de Michelangelo, pode-se buscar em vários outros autores o mesmo tipo característico feminino:
Alexandre Dumas Filho, descreve Maria Duplessis, através da personagem Margarida Gauthier, em A Dama das Camélias, com as mesmas peculiaridades de Capitu e Conceição, e as três despertam nos personagens masculinos, o mesmo tipo de atitude.
Em Rigoletto, a paixão do Duque de Mântua, é retratada em uma ária que se tornou um clássico popular: La donna é móbile.
Ao se ouvir a ária, acompanhando a letra, tem-se o perfil e a atitude de Capitu, Conceição e Maria Duplessis.
Verdi colocou a Monalisa em uma melodia na qual cabia perfeitamente a letra, e definia matreiramente o perfil que Da Vinci pintou: “ela muda sempre seu discurso e seu pensamento, e apesar de ter um rosto amável e gentil, no choro ou no riso, é apenas uma dissimulação”, diz certo trecho da ária.
Ao delinear o perfil de uma mulher de trinta anos, na verdade, Balzac queria definir um tipo de mulher aos trinta anos.
Por um processo metonímico, todas as mulheres desta faixa de idade acabaram sendo adjetivadas como balzaquianas, equivocadamente.
Basta ler “A mulher de trinta anos”, do mestre Honoré, que na sua definição vão estar todos os personagens acima descritos “... um misto de sedução e madureza...”, dizia Balzac: eis aí o enigmático, o indefinível pela dúvida do que possa ser a tez que se apresenta na figura específica deste determinado tipo.
Encheríamos páginas com exemplos de monalisas na literatura universal.
A genialidade de Da Vinci, demonstrada na Monalisa, foi que ele conseguiu materializar um tipo de mulher em uma tela.
Gravou em um rosto uma personalidade cantada em versos e prosas pelos demais gênios pelo mundo afora.
Colocou em uma tela, em um só rosto, o rosto de todas as mulheres que se alinham no perfil que Machado, Victor Hugo, Balzac, Dostoievsky, Tolstoi e tantos outros se esforçaram em definir.
Eu achei, depois de todas estas conclusões, que havia descoberto o segredo do fascínio da Monalisa e o porquê de Leonardo se ter apaixonado pelo quadro, a ponto de não se desfazer dele por preço algum.
Ele o levava para onde quer que fosse. Passou, a Monalisa, a ser o fetiche de Da Vinci.
Esta atitude do mestre em muito contribuiu para o sucesso e a aura de fascínio em torno do quadro, afinal, se o gênio o havia escolhido como obra preferida e pessoal, alguma coisa a mais deveria ter nele.
Os ocultistas da época, e os de hoje, juravam que a Monalisa tinha algo de extremamente misterioso, por isto o mestre o guardava a sete chaves.
Acredito que o que conseguiu Da Vinci com a Monalisa, foi o mesmo que conseguiu Michelangelo com o Moisés: aprisionar o próprio gênio na obra.
Ambos, depois de findas as respectivas obras, viram que haviam conseguido o estado de arte, por terem colocado nelas tudo aquilo que idealizaram.
Não cometeram erros: foram deuses nos seus respectivos ofícios.
Eis o maior mérito de Moisés e da Monalisa. Ao fitá-los se vê a paixão dos mestres naquilo que tiveram de mais sublime: a busca acabada da perfeição.
Ao meu juízo, estavam empatados novamente.
Na segunda vez que vi a Monalisa, eu consegui enxergar toda a beleza da obra.
No meio dos empurrões apressados da multidão que a busca no Louvre, consegui ver a especificidade que Da Vinci quis pintar e a genialidade com que ele conseguiu o seu intento: mil rostos em só rosto; um tipo em mil perfis. Todos ali, na Monalisa, a sorrir sutilmente todos os sorrisos das mulheres que lhe cabem na atitude dissimulada e gentil.
Dei-me por satisfeito. Quis receber aquilo como uma revelação, mas, para querer ser cético, quis que fosse apenas uma constatação.
Tive certo pudor, e ao mesmo tempo um choque, procurando afastar da mente o que esta me queria intuir ver, quando fui apanhado por um ângulo da Monalisa: eu acabara de ver ali o rosto de Maria.
Não a Maria de Alexandre Dumas Filho, ou outra Maria assim batizada: era a Virgem Maria, ou seria a Madalena?
Abanei a cabeça para espanar os pensamentos. Eu já tinha uma opinião formada, no decorrer de cinco anos do que eu deveria ver na Monalisa e constatara o meu juízo no momento em que a vira. Não havia motivo lógico algum para eu estar com aqueles pensamentos então.
Olhei novamente o quadro. Meu espanto foi maior: vi o próprio Leonardo Da Vinci sorrindo para mim.
Lembrei-me de um estudo que queria demonstrar que Da Vinci houvera pintando a si mesmo na Monalisa, daí porque o enigmático sorriso. Mas eu não dera crédito àquilo, pois me pareceu algo muito simplório para o gênio e para a obra.
A solução da equação que eu montava na mente me veio como um raio.
Inspirado no trabalho do arquiteto romano Vitruvius Pollio, De Architetura, que explica a relação entre simetria e perfeição, Leonardo Da Vinci elaborou o seu desenho mais famoso, que veio a ser o desenho mais famoso do mundo também: o “Homem vitruviano”, um pentagrama humano, com o corpo de um homem dentro de um círculo.
Deitado de barriga para cima com as mãos e pernas abertas, o corpo masculino poderia ser circunscrito tendo o umbigo como centro do círculo. Sugere ainda, que a figura pode também estar contida exatamente dentro de um quadrado.
Da Vinci desenhou o arquétipo humano: de forma descritiva, elaborou o que Vitruvius houvera evidenciado analiticamente.
Neste desenho, Da Vinci traçou um arquétipo masculino. Uma figura na qual cabia todos os homens. Fez algo eminentemente técnico, aproveitando-se da elaboração cientifica de Vitruvius.
Em o “Homem Vitruviano”, Da Vinci foi um cientista.
O que poderia o gênio de Da Vinci produzir para o arquétipo feminino especificamente, já que o desenho acima comentado, na verdade, não era especifico, mas, evidentemente, o ser humano, homem e mulher, poderia ser tecnicamente encaixado na elaboração de Vitruvius.
Seria Da Vinci capaz de usar todo o seu engenho e arte para elaborar o arquétipo feminino?
Poderia ele pintar uma mulher na qual coubesse especificamente um tipo e, genericamente todos os tipos da alma feminina?
Milhares de estudos e ensaios, teses, têm sido produzidos sobre aquele singelo quadro, e o sorriso da Monalisa continua inconcluso no pensamento daqueles que ousaram desvendá-lo.
Não pode a ciência desvendar o sorriso da Monalisa, porque ele é o arquétipo da alma feminina.
Descobrir-lhe o enigma e evidenciar-lhe a definição seria desvendar o segredo da alma humana.
Por que a alma humana e não a alma da mulher, já que eu concluíra que ali estavam todas as marias do mundo, inclusive o rosto singelo e divino da Virgem Maria?
É que, ao ver o rosto de Leonardo na obra, intui que ele quis fundir o feminino com o masculino reunindo aquilo que os deuses haviam separado.
A mitologia grega conta que havia uma civilização ideal criada pelos deuses Vênus e Eros.
Nesta civilização, os seres possuíam quatros braços, quatro pernas, duas cabeças e dois troncos distintos: um feminino e um masculino. Estes seres tinham uma mesma alma, por isto viviam em completa harmonia.
Esta harmonia provocou a fúria de outros deuses, que, enciumados, enviaram uma tempestade com relâmpagos e trovões contra aquela civilização.
Cada relâmpago que caía atingia um ser, e os corpos eram divididos e levados pelas águas.
Esta civilização éramos nós. Os raios dividiram os nossos corpos e as nossas almas. Desde então, tem sido a luta incessante do ser humano procurar a sua outra parte.
A Monalisa, então, é o arquétipo do ser humano em sua essência. O todo. A união do feminino e do masculino. O início, o meio e o fim da criação.
Da Vinci codificou na sua obra prima, toda a história filosófica do ser humano. Impregnou ali todas as dúvidas e incertezas da nossa saga e, ao mesmo tempo, quis transmitir uma mensagem de esperança e serenidade, representada pela delicadeza no porte da mulher que pintou.
A Igreja medieval impôs a figura da divindade masculina, relegando a mulher a um plano teologicamente secundário.
Isto se fez dogma e ousar desrespeitá-lo era heresia.
Da Vinci tinha na Igreja um dos seus maiores clientes: não podia ousar fazer nada que a melindrasse, tendo, inclusive, modificado algumas obras para moldá-las à vontade da Santa Sé.
Ele, todavia, filiava-se à crença, tida como pagã em sua época, e até hoje, de que a divindade era feminina: Deus era mulher.
Ia, na verdade, mais além: Deus era comum aos dois gêneros, cuja face era representada com a delicadeza, a sutileza, a serenidade, a ambiguidade e a maternidade femininas.
Leonardo precisava escrever isto para a posteridade. Precisava mostrar a perfeita imagem da divindade feminina em todas as suas nuances, e se Deus nos houvera feito a Sua imagem e semelhança, todos, homens e mulheres precisavam estar representados, e serem reconhecidos, na obra que ele se propunha a fazer.
Voltei o olhar à Monalisa. Achei que eu podia pensar que inventara tudo aquilo, em trinta segundos, apenas para justificar, com um certo enredo lógico, a minha confusão analítica.
Certa ou errada, a conclusão decididamente reforçou-me a genialidade da obra: eu acabara de entrar no clube dos caçadores da alma da Monalisa.
Quisera eu decifrá-la, pois então, eu estaria decifrando o doce mistério da vida e do ser. Como ainda tenho dúvidas e não a decifrei, ela ainda me devora.