A musa da mamata
Autor: Leandro Fortes
Matéria publicada na revista “Carta Capital”, edição 646
Por 16 anos, entre 1995 e 2011, Mônica Alexandra da Costa Pinto arrancou suspiros pelos corredores da Assembleia Legislativa do Pará. Alta, morena, de longos cabelos lisos e corpo sempre em forma, tinha 28 anos quando foi contratada para cuidar da emissão dos contracheques dos servidores. Mas em fevereiro deste ano, a funcionária, hoje com 44 anos, revelou-se outro tipo de musa. Abandonada pelos antigos chefes e por um namorado parlamentar decidiu ir ao Ministério Público revelar detalhes de um dos maiores esquemas de corrupção registrados recentemente no País. Um esquema criminoso que, entre 2003 e 2010, pode ter desviado mais de 80 milhões de reais do Legislativo paraense.
De Monica Lewinsky, que mantinha uma relação com a pélvis do ex-presidente Bill Clinton, dos Estados Unidos, a Mônica Veloso, ex-amante do senador Renan Calheiros, não foram poucos os exemplos de mulheres abandonadas que foram à forra contra seus antigos protetores. Poucas possuíam, no entanto, um arquivo de informações tão formidáveis como a dessa nova Mônica, que atualmente monopoliza as atenções da Justiça, da imprensa e da polícia do Pará. Por sete anos, ela foi a principal operadora de um esquema de fraudes da folha de pagamento da Assembleia. Os desvios são estimados em 1 milhão de reais por mês e, segundo ela, beneficiavam ao menos dois ex-presidentes da casa: o ex-deputado Domingos Juvenil, do PMDB, e o atual senador Mário Couto, do PSDB.
Couto, um dos mais importantes aliados do atual governador do Pará, Simão Jatene, foi presidente da Assembleia Legislativa entre 2003 e 2007, justamente quando se estabeleceu a quadrilha especializada em alterar contracheques, fazer compras superfaturadas, fraudar licitações e assombrar o Legislativo paraense com funcionários fantasmas e servidores “laranjas”. Foi sucedido por Juvenil, que tornou o esquema ainda mais agressivo, mas perdeu o controle da situação e cometeu o grave erro de tentar substituir Mônica Pinto por um afilhado, no início do ano passado.
Quando se viu sem o cargo que tanto amava, o de diretora da Divisão de Pessoal, e pior ainda, sem os altos vencimentos agregados ao próprio contracheque, Mônica Pinto procurou, em Belém, o advogado Luciel Caxiado e se encaminhou ao Ministério Público estadual com as provas da fraude debaixo do braço. Depois de negociar o benefício da delação premiada, encontrou-se com o promotor criminal Arnaldo Azevedo e, entre 29 e 30 de março, deu depoimentos devastadores. Além de denunciar todo o esquema, aproveitou-se para se vingar de um ex-namorado, o ex-deputado José Róbson do Nascimento, também conhecido como Robgol.
Ex-jogador de futebol, o paraibano Robgol foi um dos maiores ídolos da torcida do Paysandu, de Belém. Em 2006, foi eleito deputado estadual pelo PTB, mas como parlamentar teve uma atuação pífia e não se reelegeu em 2010. Enquanto teve mandato, no entanto, Robgol curtiu a vida adoidado. Não só se integrou ao esquema de corrupção da Assembleia, como conquistou o coração de Monica Pinto, logo nos primeiros meses da legislatura. Namorados, compartilhavam a cama e parte da fortuna desviada. A relação acabou mal, não se sabe bem por que, mas ela, hoje, só se refere a ele como “aquele senhor que não foi reeleito, para o bem da população”.
Graças a uma dica de Mônica Pinto, o promotor conseguiu um mandado de busca e apreensão na casa de Robgol, em Belém, onde a polícia encontrou 500 mil reais em espécie e mais 40 mil reais em vales-refeição da Assembleia Legislativa. A partir daí, Azevedo passou a investigar a vida parlamentar do ex-jogador e descobriu que ele não se saciava com pouco. Na semana que vem, Robgol será ouvido pelo Ministério Público para explicar a contratação fraudulenta de 20 funcionários, quase todos parentes, por seu gabinete. Detalhe: todos moram em Barra de São Miguel, na Paraíba, cidade natal do ex-jogador. Eles jamais deram um único dia de expediente, mas Robgol tinha procuração da parentada para sacar os contracheques no posto do Banco do Estado do Pará (Banpara) instalado no prédio da Assembleia.
Mônica Pinto entrou de cabeça no esquema de corrupção em 2005, quando foi convidada para ser chefe da Divisão de Pagamentos por Cilene Couto, filha do senador Mário Couto, à época reeleito para o segundo mandato como presidente da Assembleia. Cilene, hoje deputada estadual pelo PSDB, trabalhava como auditora no parlamento estadual, nomeada por influência do pai. Essa ligação reforça a suspeita do Ministério Público de que Couto participava do esquema. O senador poderá sofrer uma ação de improbidade administrativa por parte dos promotores paraenses, mas, por ter foro privilegiado, só poderá ser processado criminalmente se a Procuradoria-Geral da República se interessar pelo caso.
Na mesa de Azevedo, a investigação sobre a quadrilha já acumula 30 volumes de documentos, e não para de crescer. “É um poço sem fundo, quanto mais a gente mexe, mais coisa acha”, diz o promotor. Depois de Mônica Pinto ter tornado pública a falcatrua, afirma o promotor, quase diariamente aparece uma nova denúncia. Segundo ele, Mônica incluía e excluía na folha de pagamento pessoas do jeito que queria e lhe mandavam. Tinha autorização da ex-diretora administrativa da casa Maria Genuína de Oliveira, nomeada pelo deputado Domingos Juvenil, para compartilhar a senha de acesso com outros quatro servidores.
De acordo com a investigação, pessoas pobres da periferia de Belém eram arregimentadas como “laranjas”sob a promessa de ganhar cestas básicas e brinquedos de Natal. Em troca, repassavam os documentos para servidores da Assembleia e, então, entravam na folha de pagamento e viravam funcionários fantasmas. “Essas pessoas não tinham o menor conhecimento do que se passava”, garante Azevedo. Além disso, havia ao menos 700 estagiários contratados por um salário mínimo, mas transformados, na folha, em assessores de nível superior, com vencimentos de até 15 mil reais por mês. Um funcionário do Departamento Administrativo, Adailton Barbosa, era o responsável por sacar o dinheiro dos estagiários na boca do caixa do posto do Banpara.
“Pior de tudo é que o esquema ainda está sendo desmontado, porque não foi possível descobrir todo mundo que está na folha de pagamento”, diz o promotor. Do universo de 2 mil funcionários da Assembleia, afirma, ainda não é possível precisar quem estava envolvido direta e indiretamente com a quadrilha. Até agora, 40 pessoas foram indiciadas, mas esse número pode triplicar, no mínimo.
Sabe-se que a participação no esquema do ex-deputado Domingos Juvenil, presidente da Assembleia no biênio 2009-2010, é um fato. Em 2009, uma denúncia anônima feita ao MP informou a existência de irregularidades na folha de pagamento. Os promotores requisitaram informações ao presidente da casa, mas Juvenil, então aliado da governadora Ana Júlia Carepa, do PT, negou o acesso. Alegou que as informações eram sigilosas. O Ministério Público arguiu que as contas eram públicas, mas novamente Juvenil esquivou-se. Apenas na terceira tentativa os promotores conseguiram botar a mão na folha de pagamento, mas o documento estava maquiado: às pressas, o parlamentar mandou retirar o registro de parte dos estagiários e ordenou a promoção de outros para cargos de nível superior.
Antes, em 2007, foram detectadas diversas fraudes em licitações realizadas na gestão de Couto. A denúncia foi feita pela então deputada estadual Regina Barata, do PT, que apontou uma artimanha do atual senador: todos os contratos tinham o mesmo valor, de 79,9 mil reais, no limite estabelecido pela Lei n˚ 8.666, de Licitações, para a chamada “carta-convite”. Uma das empresas contratadas, a Croc Alimentos, era especializada em vender farinha de tapioca, mas foi cadastrada como fornecedora de material elétrico. Por causa desse episódio, Couto ganhou o apelido de “Tapiocouto”.
A ex-governadora Ana Júlia Carepa afirma que jamais soube de qualquer esquema criminoso no Legislativo estadual. Segundo ela. A aliança do PT com o PMDB era apenas política, como de resto ocorreu na esfera federal, e isenta o Banpara de qualquer participação nas malfeitorias do antigo aliado. Segundo ela, se houve participação de funcionários do banco, o Ministério Público deve processá-los e puni-los. “O que não se pode é culpar a instituição”, diz Ana Júlia.
O Ministério Público descobriu que Juvenil dava ordem para inserir pessoas por meio de bilhetes passados para Mônica Pinto (todos guardados por ela) por um sobrinho, Edmilson Campos, ex-chefe do Gabinete Civil da Presidência da Assembleia. Campos foi substituído posteriormente por Semel Charonne, que montou um esquema próprio de corrupção. Por meio de uma empresa de fachada, o marido dela, Amauri Palmeira, firmou uma série de contratos nos ramos de construção civil, aluguel de carro e informática.
Em uma das buscas feitas pela polícia, foi apreendido no computador do ex-presidente do Detran, Sérgio Duboc, quatro minutas de processos licitatórios fraudulentos com a empresa Tópicos Gêneros Alimentícios, que pertence a parentes de Daura Irene, também funcionária administrativa da Assembleia. Duboc havia sido diretor-financeiro da Casa Legislativa na gestão de Juvenil. Designado para o Detran pelo governador Simão Jatene, em janeiro de 2011, foi obrigado, após a ação do Ministério Público, a se demitir.
O filho de Duboc, Bruno Aranha Moreira, tinha um cargo de assessoramento superior baixo (DAS1) na Assembleia, mas recebia um salário três vezes maior como DAS3, mesmo sem ter curso superior. A alteração fraudulenta, afirmou Mônica Pinto ao promotor, foi feita por ordem direta do pai.
Para Azevedo, uma investigação mais profunda terá de ser feita também no Tribunal de Contas do Estado, porque, apesar da lama agora descoberta a partir das denúncias da servidora traída, nada de errado foi verificado pelo Tribunal nas contas da Assembleia de 2003 até hoje. “Fizeram um jogo de comadres”. De acordo com Mônica Pinto, Bruno Batista Cunha, filho de Ivan Cunha, conselheiro do TCE, foi incluído na folha de pagamento da Assembleia, mas trabalhava em um cargo comissionado no Tribunal. Um primo de Bruno, Altevir da Cunha Cardoso, foi contratado da mesma forma.
O atual presidente da Assembleia, Manoel Pinheiro, do PSDB, rendeu-se à pressão da Justiça e decidiu apoiar a investigação, mas nem assim o trabalho pôde ficar completo. Os promotores só tiveram autorização para fazer buscas nas salas e computadores de servidores. Os gabinetes dos deputados estaduais só podem ser vasculhados com autorização da Procuradoria-Geral, do Ministério Público e do Tribunal de Justiça do Pará, o que, até agora, não ocorreu.
Motivos para as buscas não faltam. Em seus depoimentos, Mônica Pinto listou os gabinetes envolvidos no esquema criminoso, entre os quais estão aqueles de três ex-deputados – Junior Hage (PR), Robgol (PTB) e Adamor Aires (PR) – e um com mandato, Gabriel Guerreiro, do PV. Segundo ela, Hage tinha 14 servidores no esquema, Robgol, 11, Aires, 2, e Guerreiro, 1. Havia ainda, sempre de acordo com ela, 8 funcionários do gabinete civil da Casa dedicados integralmente a fazer a máquina de corrupção funcionar.
Impedidos de instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito por força da maioria tucana, as bancadas do PT e do PSOL pediram auxílio de Brasília. Na quinta-feira 12, uma comissão externa da Câmara dos Deputados, liderada pelo Deputado Cláudio Puty (PT-PA), desembarcou em Belém para acompanhar as investigações. Em companhia de Puty seguiram os deputados Protógenes Queiroz (PcdoB-SP) e Jean Wyllys (PSOL-RJ), da Frente Parlamentar contra a Corrupção.
Os deputados federais foram conversar com o promotor Azevedo e ouvir Mônica Pinto. Essa intervenção somente foi possível porque, embora os crimes tenham sido cometidos no Pará, há interfaces criminosas na esfera federal, como fraudes previdenciárias e sonegação fiscal. Por essa razão, agentes da Receita Federal e do INSS estão na investigação. O senador Mário Couto recusou-se a dar entrevista. O ex-deputado Domingos Juvenil informou que só pretende falar depois de terminado o processo.
Carta Capital n˚ 646